05/06/2012

Livros, leitura e acesso na cultura digital



Nem mesmo a desoladora média de 2,1 livros lidos por ano pelos brasileiros ou o fato de 75% da população do País nunca ter frequentado uma biblioteca chamam tanto a atenção na edição 2012 da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil como os resultados em relação aos livros digitais.

Pela primeira vez, o estudo traz um panorama sobre o hábito de leitura de livros digitais. Um olhar pouco cuidadoso poderia apenas destacar que 46% dos entrevistados disseram que nunca ouviram falar de livros digitais (ou e-books, como enfatiza o questionário) e, consequentemente, proclamar que esse novo suporte para o livro, ou melhor, essa nova possibilidade de leitura, está ainda muito distante da realidade.

No entanto, uma análise qualitativa sobre os resultados vai trazer à tona algo que está nas entrelinhas. Se considerarmos o grupo que afirmou já ter lido livros digitais, vamos observar que 54% dos entrevistados disseram que gostaram muito da experiência, 40% gostaram pouco e 6% responderam que não gostaram.

Esse resultado é altamente positivo apesar de vir de um pequeno percentual (18%) que afirmou ter tido contato com o livro digital. Isso imediatamente nos instiga a pensar que existe sim um interesse e uma recepção até calorosa por parte de quem já experimentou.

Quem não conhece, quer conhecer (25% ) e quem já usou, gostou e quer mais (34% vão ler mais livros digitais a partir de agora). Não seria esse público o que o mercado publicitário chama de early adopter ?

Outro aspecto que merece uma reflexão mais aprofundada neste contexto é o conceito e de “livro digital”. Segundo a própria pesquisa:  “Ao falar de livros, estamos falando de livros tradicionais, livros digitais/eletrônicos, áudio livros, digitais-daisy, livros em braile e apostilas escolares. Estamos excluindo manuais, catálogos, folhetos, revistas, gibis e jornais”.

Trazer uma definição geral para “livro” é um avanço importante em relação às pesquisas de anos anteriores, no entanto, a mesma conduta poderia ter sido adotada para buscar definir o que se entende por livros digitais e/ou eletrônicos.

Quando se fala em livro digital, o que mais vem à mente são os dispositivos eletrônicos de suporte à leitura, os chamados “e-readers”. Um livro ou um jornal em um leitor eletrônico, como o Kindle, por exemplo, retoma a ideia de um produto fechado, como o impresso, com uma temporalidade também delimitada como a edição mais recente ou, no caso do jornal, a edição do dia.

A maioria dos e-readers oferece navegação semelhante ao manuseio do papel, remete quase à mesma sensação de ler um livro ou um jornal impresso. No entanto, é fundamental refletir sobre o conceito de livro digital que devemos considerar no contexto da cultura digital em que estamos. Seria meramente uma reprodução do livro em papel? Um arquivo eletrônico PDF? Uma animação multimídia cheia de cliques?

As possibilidades de leitura propiciadas por computadores, tablets, celulares e outros dispositivos extrapolam o que chamamos de livro. Como uma mídia de convergência de infinitas tecnologias e linguagens, a internet permite que textos, imagens, tabelas, infográficos, vídeos, games e diversos aplicativos multimídia possam ser simultaneamente acionados para contar uma história, seja ela ficcional ou informativa, linear ou descontínua.

Arte Fora do Museu, por exemplo, é um projeto digital sobre as obras de arte que estão nas ruas de São Paulo. Ele reúne informações em textos e fotografias, que poderiam estar em um livro, mas foram publicados online, agregando vídeos e georreferenciamento das obras. É pouco provável que alguém defina o Arte Fora do Museu como um livro digital ou um e-book. Mas muitos dos que navegaram por aquelas páginas leram tanto quanto fariam em um e-book sobre o mesmo tema. Além disso, o conteúdo de um projeto como este está distribuído pela rede, no YouTube, no Facebook, no Flickr, fazendo com que as informações sejam acessadas de muitas maneiras, fragmentadas, e que se alguém tiver interesse em se aprofundar no assunto, possa sempre ser levado à fonte original.

Os e-books e os PDF de impressos não aproveitam uma importante possibilidade trazida pelo digital: o hipertexto. O termo hipertexto, cunhado por Ted Holm Nelson nos anos 1960, significa, nas palavras de Sergio Amadeu da Silveira “uma escrita não sequencial, um texto que se bifurca e que permite ao leitor escolher o que deseja ler. São blocos de textos, conectados entre si por nexos que formam diferentes itinerários para os usuários”. O hipertexto coloca a possibilidade de os indivíduos aprofundarem conhecimento nos temas que os interessem de maneira livre e autônoma. Nesse sentido, as possibilidades abertas pela digitalização de conteúdos são potencializadas pela expansão do acesso à internet.

Antes, a veiculação da informação e do conhecimento estava vinculada a suportes materiais: livros, discos, CDs, apostilas, enciclopédias. Para disseminar informações era preciso ter acesso a esses recursos materiais, caracterizando um modelo de comunicação “de um para muitos”. A internet deu a todos o poder de criar, moldar e disseminar informações com a ponta dos dedos, abrindo a possibilidade de uma comunicação “de muitos para muitos”. O modo como produzimos e consumimos informação atualmente é muito diferente do que era no curto espaço de tempo de 20 anos atrás.

Reportagem do jornal Brasil Econômico, de 23/3/2012, traz dados da pesquisa Ipso/Reuters, mostrando que 85% da comunicação no globo já é feita pela web. A maior parte do mundo está interconectada graças aos recursos de e-mail e de redes sociais, como Facebook e Twitter. E-mails são enviados e recebidos por 85% das pessoas que estão conectadas à internet e 62% delas se comunicam por sites de redes sociais. O Brasil é o 5º país em usuários conectados a essas redes. Segundo o Ibope Nielsen Online, o país atingiu 41,7 milhões de usuários de internet em outubro de 2010.

Além de os conteúdos estarem disponíveis mais facilmente, sem depender de suporte material, eles podem ser compartilhados quase que instantaneamente pela rede www.arteforadomuseu.org mundial de computadores. Segundo o sociólogo Manuel Castells, a intensidade e o ritmo acelerado das mudanças permitem afirmar que estamos vivendo uma revolução tecnológica, saindo de uma era industrial para uma era “informacional”. Esta revolução seria um evento histórico da mesma importância da Revolução Industrial do século XVIII, “induzindo um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura”.

Se o gosto pelo livro digital parece ser uma questão de “ver para crer” e, segundo a maioria dos leitores (52%) a tendência é que ele conviva igualmente com os livros impressos, o ponto que continua em suspense é, sem dúvida, se essa convivência vai possibilitar o aumento no índice de leitura no Brasil.

Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pelo grupo de mídia e educação Scholastic e pela empresa de consultoria Harrison Group, mostra que e-books podem estimular a leitura de crianças: 57% das crianças disseram que ficariam mais interessadas em ler nos dispositivos de e-reader. Segundo o estudo, cerca de um terço das crianças disseram que leriam mais livros por prazer caso os leitores digitais estivessem a seu alcance. No entanto, 66% afirmaram que continuariam a ler livros impressos mesmo com uma maior disponibilidade do e-book.

O que poderia estimular a leitura e igualar nossos índices, no mínimo, aos de nossos vizinhos Argentina e Chile (5,4 e 4,6 livros por ano, respectivamente) passa por dois importantes aspectos. O primeiro deles envolve a conceituação de livro digital. O imenso público de internautas usuários de redes sociais no Brasil e o cada vez mais precoce contato de crianças e adolescentes com as telas digitais (29% das crianças de 5 a 9 anos já estão nas redes sociais) estão trazendo o desafio de dar novo significado à definição tradicional de livro e de leitura na era digital.

O segundo aspecto, fundamental e que faz remeter aos dados alarmantes apontados no primeiro parágrafo deste artigo, gira em torno do que chamamos de acesso. Se queremos ser um país de leitores, estamos estimulando que nossa população leia? Segundo diagnóstico do setor livreiro de 2009, verifica-se a concentração de livrarias na região Sudeste (56%), seguida pela Sul (19%), Nordeste (12%), Centro-Oeste (6%), DF (4%) e Norte (3%). Dois terços dos municípios brasileiros não possuem livraria.

Seriam os livros digitais agentes de promoção de leitura à medida que dispensam o custo de suporte material, impressão e distribuição? Durante sua participação na Festa Literária de Paraty – Flip, em 2008, o escritor inglês Neil Gaiman deu uma entrevista coletiva na qual diz não se importar se as pessoas têm acesso a seus livros, emprestando umas das outras ou se baixam gratuitamente da internet. Gailman ressalta que seu interesse é que as pessoas ingressem na “sua tribo”, uma tribo de leitores.

Se nosso desejo também combina com o de Gailman, precisamos aprofundar aqui a questão do acesso. A pesquisa traz um dado bastante curioso em relação à enorme porcentagem dos que já leram livro digital que realizaram download de obras. 87% disseram que baixaram publicação gratuitamente da internet. Desses, 38% responderam “sim” quando questionados se a publicação era “pirata”.

O termo “pirataria” vem sendo cotidianamente empregado para designar toda e qualquer obra artística ou intelectual (incluindo livros) que pode estar violando os termos de direito autoral ou copyright. Há que se relativizar, no entanto, que a metáfora semântica em relação aos criminosos dos mares que roubavam ouro e outros tesouros dos navios não é a mais apropriada. Quem rouba um bem material faz, de fato, com que outra pessoa o perca. No entanto, no mundo digital não existe perda quando se faz uma cópia de uma música ou de um texto na internet. Um livro ou uma música podem ser copiados de um dispositivo para outro, sem que o cedente da cópia perca seu acesso ao conteúdo, que ainda pode ser apreciado por milhões de pessoas simultaneamente. Os bens intangíveis e imateriais não conhecem a escassez, nem o desgaste.

No início do mês de maio, quem é usuário frequente do Twitter pode acompanhar a polêmica em torno da hashtag #freelivrosdehumanas, uma manifestação pública em favor da manutenção do site de compartilhamento livrodehumanas.org, criado há 3 anos, que possibilita baixar gratuitamente cerca de 2 mil livros esgotados nas áreas de filosofia, psicologia, literatura e psicanálise em formato PDF ou EPUB. O site foi retirado do ar mediante notificação da justiça a partir de uma ação movida pela

Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR) que pretende enquadrar o site em uma das maiores ações de pirataria ocorridas no país. Para reunir as diversas reações contrárias a essa ação, foi criado o blog Direito de Acesso.

O caso do livrodehumanas.org é um ótimo exemplo para elaborarmos um pouco mais o que entendemos por digital e como o digital faz hoje parte da nossa sociedade – uma sociedade em constante transformação. Não se trata somente da transformação de qualquer informação em bit, apesar de se tratar também disso. Comprimir dados - sejam eles textos, áudios, vídeos ou imagens - de seu suporte material, livros, revistas ou jornais, aumenta as possibilidades de reprodução e de distribuição de conteúdos. Ou seja: aumenta as possibilidades de acesso e difusão da leitura. Para Pablo Ortellado, professor da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o

Acesso à Informação (GPOPAI), a digitalização do livro tem um impacto fundamental na difusão do conhecimento entre classes sociais que antes não conseguiriam adquirir livros, já que a renda familiar de muitos estudantes é inferior ao valor da bibliografia solicitada em cursos universitários.

Não afirmamos com isso que o livro impresso vai acabar ou que não é possível lucrar com conteúdos digitais. Trata-se de buscar um outro modelo de negócio, que não esteja baseado em cobrar pelo acesso aos conteúdos, mas sim ao uso de serviços associados ao conteúdo. Já existem algumas iniciativas pelo mundo que podem servir de exemplo e inspiração para editoras, como a Flatword Knowledge , citada na última partes deste artigo.

Yochai Benkler, professor de Direito da Universidade de Harvard e diretor do Berkman Center for Internet and Society, um dos pensadores contemporâneos mais referenciados quando o assunto é movimento colaborativo como modelo de produção na era digital, traz uma reflexão interessante para destacar que trabalho realizado pelo autor de uma obra não será refeito sempre que um usuário tem acesso a ela : “Tolstoi não precisaria gastar nem mais um segundo de trabalho a fim de atender ao centésimo milionésimo leitor de Guerra e Paz, além do que gastou para atender ao primeiro leitor” (2010: 14). Diferentemente dos altos custos inerentes à impressão e à distribuição de material impresso, distribuir materiais digitais tem um custo muito baixo.

Com a expansão do acesso à internet, diversos movimentos pela liberdade de distribuir e modificar trabalhos e obras criativas têm ganhado força e se justificam pelo direito à educação e à cultura e também pelo direito do autor em decidir que usos quer permitir para sua produção. São cada vez mais conhecidos os movimentos do software livre, do Creative Commons, da transparência de dados públicos, dos recursos educacionais abertos (REA).

O termo "recursos educacionais abertos" (open educational resources, em inglês, OER) foi adotado, pela primeira vez, durante um fórum da Unesco, em 2002. Trata-se do esforço de uma comunidade de educadores, políticos e usuários articulada para criar, reutilizar e propagar bens educacionais pertencentes à humanidade. Em 2007, foi publicada a Declaração da Cidade do Cabo para a Educação Aberta:

“Esse movimento emergente de educação combina a tradição de partilha de boas ideias com colegas educadores e da cultura da internet, marcada pela colaboração e interatividade. Esta metodologia de educação é construída sobre a crença de que todos devem ter a liberdade de usar, personalizar, melhorar e redistribuir os recursos educacionais, sem restrições. Educadores, estudantes e outras pessoas que partilham esta crença estão unindo-se em um esforço mundial para tornar a educação mais acessível e eficaz.”

Quando materiais didáticos e educacionais são considerados bens públicos e comuns, todos podem se beneficiar: professores, estudantes e autores interessados na utilização de sua produção. Quando tais materiais são pagos com dinheiro público, seja pelos programas de incentivo ao livro e à leitura ou por iniciativas próprias de governos produzirem materiais, faz ainda mais sentido que sejam bens públicos. E por incentivarem a produção aberta, o compartilhamento e o acesso a conteúdos, REA otimizam a utilização de recursos públicos.

Além de tais benefícios, os recursos educacionais abertos criam a oportunidade para uma transformação ainda mais fundamental na educação: a de ter educadores, estudantes e mesmo aqueles não formalmente vinculados a uma instituição de ensino envolvidos no processo criativo de desenvolver e adaptar recursos educacionais.

Governos e instituições de ensino podem formar professores e alunos para a produção colaborativa de textos, imagens e vídeos de qualidade. É criado espaço para a formação continuada de professores e estudantes para a produção e edição de material didático e a apropriação de tecnologias digitais em seu cotidiano. Com a abertura dos materiais na rede, a possibilidade de formação continuada se expande a toda a sociedade.

No Brasil, nos últimos três anos, tanto governo federal como governo estadual e municipal de São Paulo começam a debater e criar leis visando o uso e o desenvolvimento de REA. O país também foi sede do Fórum Regional para a Declaração da Unesco, que convida governos do mundo todo a declarar que recursos educacionais financiados com recursos públicos devem adotar o modelo REA.

Um exemplo é o Plano Nacional de Educação (PNE) a ser votado este ano no Congresso Nacional e que estabelece diretrizes e metas para a educação no Brasil até 2020. Pela primeira vez, o PNE contempla o incentivo a REA dentro da meta 7, que foca a melhoria da qualidade por meio do aumento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Ainda no âmbito federal, o Projeto de Lei 1513/2011 visa garantir que as compras públicas ou contratação de serviços e materiais educacionais sejam regidas por meio de licenças livres, permitindo a difusão e a ampliação do acesso a esses bens.

O Brasil não está sozinho no debate sobre políticas públicas de REA. Nos EUA, por exemplo, o presidente Barack Obama pretende acelerar o processo de inclusão digital em todas as escolas norte-americanas, propiciando que todos os estudantes tenham acesso a livros didáticos digitais até 2017 (ROSSINI e GONZALEZ, 2012). Além disso, abriu uma linha de financiamento de US$ 2 bilhões destinada a produção de REA em colégios comunitários.

Fonte: Estadao

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